sábado, 30 de julho de 2011

O Tempo Entre Costuras...


"Cresci em um ambiente moderadamente feliz, com mais apertos que excessos, mas sem grandes carências nem frustrações. Fui criada em uma rua estreita de um bairro típico de Madri, ao lado da praça De la Paja, a dois passos do Palácio Real; a um pulo da agitação constante do coração da cidade, em um ambiente de roupa estendida, cheiro de água de lavadeira, vozes de vizinhas e gatos ao sol. Frequentei uma rudimentar escola em um local próximo: em seus bancos, previstos para duas pessoas, acomodávamo-nos de quatro em quatro, sem ordem e aos empurrões para recitar em voz alta La canción del pirata e a tabuada. Ali aprendi a ler e escrever, a usar as quatro réguas e o nome dos rios que cortavam o mapa amarelado pendurado na parede. Aos doze anos, concluí minha formação e entrei, na qualidade de aprendiz, no ateliê em que minha mãe trabalhava. Meu destino natural.
Do ateliê de dona Manuela Godina, a proprietária, havia décadas saíam peças primorosas, excelentemente cortadas e cosidas, famosas em Madri inteira. Roupas de dia, vestidos de coquetel, casacos e capas que depois seriam ostentados por senhoras distintas em seus passeios pela Castelhana, no Hipódromo e no polo de Puerta de Hierro, ao tomar chá no Sakuska e quando iam às igrejas de segunda categoria. Passou-se algum tempo, porém, até que comecei a adentrar os segredos da costura. Primeiro, fiz de tudo no ateliê: retirava as brasas dos fogareiros e varria do chão os restos de tecido, aquecia os ferros de passar no fogo e corria sem parar para comprar linhas e botões na praça de Pontejos. Eu também era encarregada de levar às seletas residências os modelos recém-terminados embrulhados em grandes sacolas de tecido escuro; era minha tarefa favorita, o melhor entretenimento naquela carreira incipiente. Conheci, assim, os porteiros e motoristas das melhores casas, as donzelas, criadas e mordomos das famílias mais endinheiradas. Contemplei, sem mal ser vista, as mulheres mais refinadas, suas filhas e maridos. E, como uma testemunha muda, adentrei suas casas burguesas, palacetes aristocráticos e apartamentos suntuosos dos edifícios tradicionais. Em algumas ocasiões não chegava a ultrapassar as áreas de serviço e alguém do corpo de empregados cuidava de receber a roupa que eu portava; em outras, porém, incitavam-me a entrar até os quartos, e para isso eu percorria os corredores e vislumbrava os salões, e comia com os olhos os tapetes, os lustres, as cortinas de veludo e os pianos de cauda que às vezes alguém tocava e às vezes não, pensando em como seria estranha a vida em um universo como aquele.
{...}
A Segunda República havia infundido um sopro de agitação na confortável prosperidade do ambiente de nossas clientes. Madri andava convulsionada e frenética, a tensão política impregnava todas as esquinas. As boas famílias prolongavam até o infinito seus veraneios no Norte, desejosas de permanecer à margem da capital inquieta e rebelde em cujas praças anunciavam o Mundo Obrero enquanto os proletários descamisados da periferia adentravam sem reservas a Porta do Sol. Os grandes carros particulares começavam a rarear pelas ruas, as festas opulentas também. As velhas damas enlutadas rezavam novenas para que Azaña³ caísse logo e o barulho das balas se tornava cotidiano quando se acendiam os faróis a gás. Os anarquistas queimavam igrejas, os falangistas sacavam pistolas com pose de valentões. Com frequência crescente, os aristocratas e altos burgueses cobriam com lençóis seus móveis, demitiam os empregados, trancavam as janelas e partiam com urgência para o exterior, passando tranquilamente joias, medos e dinheiro pelas fronteiras, sentindo saudade do rei exilado e de uma Espanha obediente que ainda tardaria a chegar. E no ateliê de dona Manuela entravam cada vez menos mulheres, saíam menos pedidos e havia menos a fazer. Em um penoso conta-gotas, foram sendo dispensadas primeiro as aprendizes e depois as demais costureiras, até que, no fim, só restamos a dona, minha mãe e eu. E quando terminamos o último vestido da marquesa de Entrelagos e passamos os seis dias seguintes ouvindo rádio, de braços cruzados sem que sequer uma alma batesse à porta, dona Manuela anunciou, entre suspiros, que não tinha mais remédio senão fechar o ateliê. Em meio à convulsão daqueles tempos, quando as disputas políticas faziam tremer as poltronas dos teatros e os governos duravam três pais-nossos, mal tivemos oportunidade de chorar o que perdemos. "
Opinião: Surpreendente!!! Entre alinhavos, botões e tecidos vemos uma história que surpreende... Ela fa uma reviravolta na vida da personagem que nem mesmo eu sabia que iria acontecer... Muito bom!!
Editora: Planeta
Assunto: Literatura Estrangeira
ISBN:
9788576655435
Idioma: Português
Tipo de Capa: BROCHURA
Edição: 1
Número de Páginas: 480

Início: 03/04/2011

Término:
30/07/2011

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