segunda-feira, 18 de maio de 2009

O Livreiro de Cabul...

“Numa gélida tarde de novembro de 1999, a rotunda de Charhai-e-Sadarat em Cabul ficou iluminada durante horas por uma fogueira. As crianças apinhavam-se em volta das chamas que tremeluziam sobre os rostos sujos e lúdicos. Os meninos de rua apostavam quem ousaria chegar mais perto das chamas. Os adultos lançavam olhares furtivos à fogueira, afastando-se depressa. Era mais seguro assim. Todo mundo podia ver que aquela fogueira não fora feita pelos guardas na rua para esquentar suas mãos, era uma fogueira a serviço de Deus. O vestido sem mangas da rainha Soraya encrespou-se antes de virar cinzas. O mesmo fim esperavam seus belos braços brancos e seu rosto sereno. Com ela queimou seu marido, o rei Amanullah, e todas as suas medalhas. Toda a linhagem real crepitou na fogueira, acompanhada de moças em trajes típicos, soldados mujahedin a cavalo e alguns camponeses num mercado de Kandahar. A polícia religiosa foi escrupulosa ao executar sua missão na livraria de Sultan Khan neste dia de novembro. Todos os livros com ilustrações de seres vivos, pessoas ou animais foram varridos das prateleiras e jogados na fogueira. Páginas amareladas, cartões-postais inofensivos e grandes enciclopédias foram vítimas das chamas.

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Os livros eram a vida de Sultan. Desde que recebeu seu primeiro livro na escola, ele era fascinado por livros e histórias. Nasceu numa família pobre e cresceu nos anos 1950 no vilarejo de Deh Khudaidad, na periferia de Cabul.

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Começou a vender livros ainda adolescente. Tinha acabado de entrar para a engenharia, mas estava difícil encontrar os livros de que precisava. Numa viagem com o tio a Teerã, encontrou por acaso todos os títulos que estava procurando num dos ricos mercados de livros da cidade. Comprou vários exemplares que depois vendeu a seus colegas em Cabul pelo dobro do preço. E assim nasceu o livreiro, e uma nova vida para ele.

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Quando caiu o regime talibã, dois meses depois dos ataques terroristas nos EUA, Sultan foi um dos primeiros a voltar para Cabul. Finalmente podia encher as prateleiras com todos os livros que quisesse. Podia vender os livros de história com as ilustrações rabiscadas de nanquim como curiosidades para estrangeiros e retirar os cartões de visita colados sobre imagens de seres vivos. Novamente podia mostrar os alvos braços da rainha Soraya e o peito coberto de medalhas de ouro do rei Amanullah.

Uma manhã, enquanto tomava uma xícara de chá fumegante na livraria, ele percebeu que Cabul voltava à vida. Enquanto fazia planos de como realizar seu sonho, pensou numa citação do seu poeta favorito Firdausi. “Para se ter êxito, algumas vezes é preciso ser lobo, outras vezes cordeiro.” Estava na hora de ser lobo, Sultan pensou.

{Trecho Extraído do Livro: O Livreiro de Cabul – Asne Sierstad}

Sinopse: Por mais de vinte anos, Sultan Khan enfrentou as autoridades, tanto comunistas quanto do Talibã, para prover livros aos moradores de Cabul. Ele foi preso, interrogado, encarcerado e assistiu os soldados talibãs queimarem pilhas e pilhas de livros nas ruas. Ainda assim, persistiu em sua paixão pelos livros. Chegou a esconder milhares de exemplares em sótãos pela cidade, alimentando o sonho de ver seu acervo de 10 mil volumes sobre história e literatura afegã ser transformado no núcleo de uma nova Biblioteca Nacional, semeando alguma luz em um dos lugares mais sombrios do mundo. Depois de viver três meses em Cabul, com o livreiro Sultan Khan, a jornalista norueguesa Asne Seierstad compôs este retrato das contradições extremas e da riqueza desse país. Um relato do cotidiano de uma família islâmica e das dificuldades deste povo para obter conhecimento e se comunicar. Um retrato íntimo de um homem, seus princípios e sua família; enquanto enfrentam os desafios e tensões diárias, os integrantes da família tentam também viver uma certa normalidade por meio do trabalho, de um dia de compras, cozinhando em um momento e se divertindo no outro, casando e dividindo alegrias. As mulheres, em especial, são protagonistas de relatos impressionantes. Mesmo após a queda do Talibã, submetem-se a casamentos arranjados, maridos poligâmicos e a limitações para viajar, estudar e se comunicar com os outros. Estas e muitas outras histórias compõem essa narrativa, mostrando aspectos do país que poucos estrangeiros testemunhariam. Por meio de uma narrativa envolvente, Asne Seierstad dá voz à família Khan, apresentando ao leitor uma coleção de personagens comoventes que reflete as contradições do Afeganistão.
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Opinião: O livro é um relato do cotidiano de uma família que vive em uma cultura totalmente divergente da ocidental, um lugar onde as mulheres não têm voz e nem vez. O chefe dessa família construiu um império com livros, mas que impede que seus filhos estudem. Há contradição maior? É uma boa leitura, com várias referências históricas, sejam elas recentes (como o Talibã) ou não (como as conquistas de Alexandre, o Grande na região).

Editora: Record
Assunto: Sociologia
ISBN: 8501072877
Idioma: Português
Edição: 1
Número de Páginas: 316

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